Pietra Aliardi
Mulheres mortas em abortos clandestinos, criminalizadas. Fatos recentes, amplamente divulgados, tornam urgente a reflexão: a morte de Jandira (que foi encontrada carbonizada em um carro após um aborto mal sucedido), clínicas de aborto fechadas (casos recentes em RJ e RS, por exemplo) e os dados positivos provindos do Uruguai após um ano de legalização. Para discutir o tema é preciso basear-se em pressupostos racionais, sociais, éticos e médicos
Mulheres mortas em abortos clandestinos, criminalizadas. Fatos recentes, amplamente divulgados, tornam urgente a reflexão: a morte de Jandira (que foi encontrada carbonizada em um carro após um aborto mal sucedido), clínicas de aborto fechadas (casos recentes em RJ e RS, por exemplo) e os dados positivos provindos do Uruguai após um ano de legalização. Para discutir o tema é preciso basear-se em pressupostos racionais, sociais, éticos e médicos
No Brasil estima-se que um milhão de abortos clandestinos
sejam realizados por ano, isso demonstra que a ilegalidade não impede que as
mulheres busquem alternativas para interromper as gestações indesejadas. Ao
contrário, esta ilegalidade serve somente para que haja grande especulação
financeira nas clínicas de aborto, levando riscos maiores para as classes
sociais mais baixas, que acabam buscando métodos ainda menos seguros para
realizar o aborto. O aborto é uma realidade na sociedade, como sempre foi e
continuará sendo. Mulheres pobres e ricas praticam. Muitas vezes estes abortos
são feitos em situações precárias, por mulheres sozinhas e desesperadas, que
buscam todo o tipo de “solução”, incluindo procedimentos perigosos, como
inserir agulhas de tricô pela vagina. E como a lei segue tutelando o corpo, o
desejo e a autonomia das mulheres, elas continuam sendo criminalizadas,
sequeladas e morrendo.
Há um grande investimento no discurso de que o aborto não
pode ser legalizado porque as mulheres o usariam como método contraceptivo. O
aborto não é uma coisa simples, mesmo em uma gravidez indesejada, há toda a
questão física e emocional envolvida. O que as mulheres que lutam a favor da
legalização querem é o direito de decidir sobre o próprio corpo. Há uma
estagnação no avanço de políticas públicas relacionadas à garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres, a saúde de qualidade para as mulheres
segue sendo negligenciada nas três esferas do poder.
No Uruguai, segundo balanço divulgado pelo governo, em um
ano de legalização do aborto foram realizados 6.676 abortos seguros e nenhuma
morte foi registrada, ainda, afirma que apenas 6,3% das gestantes mudaram de
ideia após passar pela equipe médica multidisciplinar, o que indica que quando
chegam a procurar pelo aborto as mulheres estão seguras de sua decisão. Os
defensores da lei acreditam que com o passar do tempo os abortos devem diminuir
e não consideram a taxa realizada alta (9 interrupções a cada mil mulheres
entre 15 e 44 anos).
Diante do número assustador de mortes causadas pelo aborto
ilegal é necessário assumir: este é um tema de saúde pública e não de polícia.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que ocorram 42 milhões de abortos
por ano no mundo. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, procedimentos abortivos
mal feitos são a terceira causa de morte materna. O Conselho Federal de
Medicina (CFM), por exemplo, defende que, até a 12ª semana de gestação, a
mulher tenha autonomia para decidir se interrompe ou não a gravidez, alegando
que até este período (3 meses), o sistema nervoso central do feto ainda não
está desenvolvido e os riscos para a gestante são menores.
(...) leis já permitiram o assassinato de gays – não esqueçamos,
sobretudo, que esta tragédia ainda persiste em certos países. Não esqueçamos
que leis já condenaram mulheres insatisfeitas com o casamento que buscaram
novas possibilidades – não esqueçamos, sobretudo, que mulheres consideradas
adúlteras ainda são mortas em certos países.
Aborto é crime? O Código Penal Brasileiro assim estabelece, prevendo
pena de detenção de um a três anos para a gestante que praticar. A lei deixa
algumas brechas, como em caso decorrente de estupro ou quando a gravidez coloca
em risco a vida da mulher. Em abril de 2012, decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF) também liberou a prática, se há detecção em exame de anencefalia
fetal. (...) tratar como criminosa qualquer mulher que opta por abortar é uma
perspectiva que desconsidera grosseiramente a complexidade da questão e reforça
o ciclo de violências simbólicas e concretas que incidem sobre a condição
feminina (Aborto, jornalismo e polícia – ou quando os papéis são descumpridos e
excedidos – por Vitor Necchi).
Entendemos que a mulher deve ter o direito de decidir sobre
seu corpo e sua vida. Para tal, é preciso ter acesso à informação sobre seu
corpo, métodos de planejamento familiar, condições de maturidade desenvolvidas
pela vida que a possibilitem tomada de decisões autônomas, ter acesso à saúde
que a permita ter uma sexualidade saudável e planejar os momentos de sua vida,
e de ter, efetivamente, condições de decidir sobre o aborto, sobre ter filhos
ou não. Inclusive porque a própria decisão de ter filhos passa por situações em
que as mulheres tem que ter garantia de toda uma atenção a sua saúde durante a
gestação, o parto e o puerpério (pós-parto) – visto que há altíssimos níveis de
mortalidade materna devido a má qualidade do atendimento que as mulheres
recebem no Sistema Único de Saúde (SUS).
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